quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Sobre o mundo


Sim: o mundo muda, desde que nem era mundo, ele muda.
Até o que é ou não é o mundo muda.
Eu mesmo deixei de pensar sobre o meu mundo quando descobri que ele não era nem meu, nem era o mundo.
O mundo é tudo que tem nele, o que não tem ainda e o que deveria ter.
Ele não gosta quando dizem coisas do tipo “o mundo segundo os...”. Ora, não se é algo segundo alguém acha. Apenas se é.
O mundo é isso e aquilo e aquilo outro também e tudo o mais que nele está e poderia ser é ele também.
E a gente vem pra cá e ajuda e estraga, embeleza e faz feiuras, nasce, escarnece e morre, às vezes brinca e muitas vezes não brinca.
No mundo tem de tudo, mas todo dia tem uma novidade.
Mas uns não têm nada e outros têm tudo. Daqui um pouquinho esses têm mais ainda e aqueles perdem o que já não tinham.
Nada e tudo por aqui são conceitos indeterminados.
Tem dia que meu mundo sou eu, noutros é meu filho ou minha mulher, noutros ainda é o virtual ou o real desalentador.
Olha, esse negócio de mundo parece que não é pra gente séria.
Ia agora começar a falar sobre o ser humano nesse lugar.
Que ele agride, subjuga, explode o outro, joga lama e venenos por todo lado.
Aí pensei que pra falar de flores não é preciso falar de suas chagas.
O mundo é o mundo, apesar da humanidade.






sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Nossa casa

Se o mundo é a nossa casa, estão nos proibindo de ir do quarto pra sala.
Aliás, muitas vezes estão impedindo que saiamos da famigerada área de serviço ou da dependência de empregada.
Na verdade, nem temos um quarto.
Estamos meio que de favor.
Na geladeira o danone tem uma etiqueta com o nome do dono. Ai de quem ousar pegar!
O controle da tv já tem dono. Se quiser, veja o que está passando na sala. Afinal, você é livre, livre pra escolher entre ver o que já escolheram ou não ver nada, sair daqui.
Os enfeites espalhados pela residência são, basicamente, miçangas adquiridas nas viagens dos mesmos que controlam o controle. Bugingangas sem graça e sem sentido que refletem o espírito de quem as comprou.  
Há, também, fotos na bancada pra relembrar os grandes momentos vividos pela galera que mora na casa. Não vi fotos nossas. Devem ter esquecido.
Sei não, mas acho que o pessoal da única suíte da casa tá vacilando com os outros moradores dos outros dez quartos da residência. Achei que o combinado era dividir, conviver bem numa república bacana. Sei que eles alegam que pagam a maior parte do aluguel. Mas pagam com a grana que a gente passa pra eles. Eles vivem disso, não os vejo sair pra trabalhar nunca.
Oi!? Tenho que sair?! Mas por quê?! Suas coisas já estão lá fora! Eu vou pra onde, cara? Sei lá! Dá seu jeito! Saio não!
Vocês acreditam que quando falei isso o brothers do quarto vizinho ao meu, que passam pelas mesmas coisas que eu, vieram me ameaçar?!
Fui, né? São muitos e fortes!
Aff!
Gente, ajuda aê! Procuro um LAR que expresse de fato a referida sigla: Lugar de Afeto e Respeito.
Eu, hein!? A gente não conhece as pessoas mesmo!

quarta-feira, 29 de julho de 2015

A violência

A violência chegou. Na verdade ela nunca nos deixou. Por aqui (como em todos os lugares), ela, a violência praticada pelo homem, a qual possivelmente existe desde o primeiro dessa espécie. Evidentemente, não acredito numa suposta homogeneidade entre as histórias dos milhares (milhões?) de povos que já habitaram este planeta, tampouco tenho qualquer pretensão de discorrer sobre um assunto sobre o qual não tenho nenhum conhecimento. Essas primeiras informações estão aqui apenas para representar a ideia de que a violência não é uma novidade, um fenômeno exclusivo da contemporaneidade, nem aqui nem em lugar algum. Ela acontece (ou aconteceu) das mais diferentes formas, pelos mais variados motivos, com inimagináveis instrumentos e rituais.
Ocorre que agora ela é notícia permanente, espetáculo onipresente, assunto das mais variadas rodas de conversa. Atinge a tod@s nós, seja diretamente, seja de forma reflexa – quando afeta a alguém de quem gostamos -, seja pelos mais variados meios de comunicação. Isso é horrível, traz medo, desesperança, ansiedade, pânico, incerteza, insegurança etc. Por outro lado, se a discutirmos inteligentemente, esse pode ser um momento de reflexão e ação sobre uma mazela social de demasiada gravidade.
O extermínio indígena e as atrocidades cometidas contra os negros ao longo da história do nosso país estarreceriam Datenas, Sherazhardes e toda sorte de programas cujos produtos são a barbárie e a maldade humana (se esses grupos fossem pertencentes à classe dominante, é claro).
Não lamentamos as violências histórica e contemporaneamente praticadas contra os índios, os negros ou os pobres. Ao contrário, naturalizamos ou ignoramos esses fatos.
Porém, chegou o dia em que o fenômeno até então invisibilizado bate à porta de tod@s. O que fazer? É claro que eu não tenho a solução. 

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Pra cria

Neném, o mundo no qual você vai nascer não é exatamente aquele no qual o papai queria que chegasse. Explico a seguir.
O noticiário recente informa que houve atos de terrorismo praticados por fanáticos religiosos (se é que “fanático religioso” não é uma redundância). Alguns correligionários de grupos terroristas, os quais têm no Islã sua base de apoio teórico, mataram jornalistas (de um jornal satírico francês) dizendo que estariam vingando Maomé.
Olha, papai não curte religião nenhuma, daqui a um tempo você vai ver o quanto isso é difícil pra quem pensa assim. Por isso, mas não só por isso, achei um absurdo tal ato. Esse fato serviu para reforçar ainda mais minha crença de que as religiões fazem as pessoas fazerem coisas insanas, porque as religiões, em si, são insanas. Mas você pode ter a crença que quiser, vou respeitar. Essa é a primeira coisa que quero lhe ensinar: não importa o que você acha certo ou errado, todos podem crer, fazer, pensar, amar ou odiar o que quiser, você deve aceitar, respeitar, tolerar é muito pouco. Cada um faz da vida o que quer. Além disso, e por isso também, você não deve admitir nenhum tipo de interferência ou imposição sobre suas ideias e crenças.
Filho, tá faltando água. Aqui no nosso país tem um monte de água, mas não necessariamente no lugar em que os seres humanos precisam para poder consumi-la. Aliás, no nosso Brasil tem um monte de coisas e ideias fora do lugar. Não se acostume com isso nunca, tente sempre ajeitar, mesmo que essa tarefa pareça impossível. Desistir não nos cai bem. Desistir é paia, filho. Deixa o que tiver aí dentro falar, que o teu impulso seja o teu guia.
Tem aumento de impostos, de juros, de tudo, menos do salário do papai e da mamãe. A Dilma venceu, votei nela. Não havia a opção “correta” na urna, foi o que deu pra fazer. Ainda estamos num estágio de evolução no qual pra ser um candidato com alguma chance de vitória tem que ser meio mau caráter.
Também saiu uma pesquisa dizendo que em 2016 o 1% mais rico da população vai ter 52% da riqueza do planeta. Filho, isso é o maior mal desse mundo! Não ache isso normal nunca, por favor! A desigualdade é a causa de quase todos os males da humanidade. Você não vai consertar isso, mas nem por isso vai deixar de lutar pra mudar essa realidade absurda!
A violência tá bombando por aqui. As pessoas matam por qualquer coisa. Não comprarei arma alguma. A nossa defesa será o amor, a palavra, afinal, a agressão e a estupidez não devem prevalecer. Ainda que estejam por aí se impondo, não ceda a elas. Nem eu, tampouco sua mãe, jamais nos deixamos levar por esses sentimentos típicos dos covardes e arrogantes.

Filho, Brasília continua com um céu lindo, tem um monte de gente legal tentando construir um mundo melhor. Tem mais pessoas com mais acesso a bens de consumo essenciais. A arte continua necessária. Viver, filho, é uma experiência muito louca, intensa, uma dádiva e uma carga. Não posso prometer que será feliz (gente feliz demais tem algum problema! Opinião do pai), mas digo a você, cria: estou aqui! Conta comigo, cara! Seja o que quiser, mas, imploro, seja uma pessoa massa! Nem o conheço, mas já o considero pacas, seu feto fofo!

Ser 44 ou cinza é uma bosta.

É oito ou oitenta! Ou é preto ou é branco! E se não? E o que falar dos que são 32, 52 ou 44? Qual o lugar do grafite, do prata, do dálmata ou do cinza? Detesto quem não se posiciona. Mas, necessariamente, temos que aderir a uma das posições extremas oferecidas? Só existem elas? Certamente não. Sim, você já adivinhou, vou falar sobre essas paradas que estão rolando.
Pensando nisso, não ecoar o discurso do “Fora Dilma” não faz de você um PTralha. Criticar o governo ou achar que as pessoas podem ou devem protestar quando insatisfeitas não faz de você um tucano, coxinha, adepto da oposição ou golpista.
“- Tá. Então de que lado você está?” Quem?! Eu?!
Não, eu não estou “do lado do Brasil” (seria muito arriscado apoiar um conceito tão aberto, impreciso, genericamente associável tanto ao seu potencial agropecuarista, quanto à quantidade de reservas naturais preservadas; tanto ao seu caráter extremamente tolerante, quanto à realidade violenta e preconceituosa; tanto ao pôr-do-sol, quanto ao noroeste etc.) . Tampouco estou do lado da “mídia oficial” (a Globo, a Abril, a Band, os Civitas, a Record, o Correio Braziliense, ou qualquer outro grande grupo de comunicação do país ocupa lugar minimamente afetuoso ou respeitoso do meu coraçãozinho). Menos ainda apoio os interesses egoísticos das elites nacionais “que há mais de 500 anos saqueiam as riquezas e os espoliados desta terra” (acho nossa elite preguiçosa, incompetente e colonizada demais, também acho que a nação brasileira é bem mais jovem, se é que efetivamente ela já se formou; pra mim, tem cento e poucos anos que estamos de fato tentando construir um projeto de país). Juro que não sou a favor das intenções imperialistas veladas que operam (?) por aqui (sobre isso não irei comentar nada, espero que entendam a minha incapacidade em argumentar contra proposição tão insubsistente).
Também não sou um “governista alienado” (achar o máximo os avanços sociais implementados pelo governo petista nos últimos anos não faz de mim um filiado pago ou um ingênuo útil). Nem diga (se quiser dizer, também, tudo bem) que sou um esquerdistinha dissimulado (seja porque o PT não é um governo de esquerda, seja porque não me furto em afirmar que sim, sou adepto aos valores historicamente defendidos por essa corrente, seja porque estou muito distante de muitos autointitulados esquerdistas, seja porque acho a direita cínica, sem graça e cretina ao afirmar que o sucesso é uma questão de mérito, dentre tantas outras coisas).
Acabo de perceber que, ao tentar dizer o que sou, estou, na verdade, dizendo o que não sou. É uma possibilidade.
Em síntese, não estou ao lado de nenhum dos dois únicos lados supostamente existentes. Adoro o povo na rua, não interessa que povo é esse, acredito que o direito à livre manifestação é um valor essencial à democracia, à liberdade, à convivência harmônica entre os diferentes. É claro que essa liberdade tem limites, em especial aqueles referentes ao direito de outros grupos sociais a não serem agredidos (não acho aceitável uma manifestação que defenda o racismo, o ódio, a intolerância etc.). Mas sair na rua e dizer que está puto com o governo, com a corrupção (por mais bobo que isso pareça ser) ou com a presidenta é, sem dúvida alguma, legítimo (viu?! usei “sem dúvida alguma”, não sou tão vaselina assim).
Agora, querer retirar, na marra, uma pessoa legitimamente eleita pela maioria dos brasileiros (53 milhões de pessoas votaram nela, inclusive eu), não me parece pertinente. Não que as pessoas não possam pedir isso, apenas não acho que seria algo bacana, tranquilo, é assim mesmo, "vamos dar uma lição nessa corja". Temos regras. Aliás, só por isso somos da mesma galera. Essas regras foram combinadas antes do início do jogo. Estar insatisfeito com um governante não possibilita a deposição do mesmo. No parlamentarismo isso seria dentro das regras, sabia? Mas a gente nem discute essa possibilidade. Queremos mudar o jogo enquanto ele está rolando e não cogitamos mudar as regras para que o próximo seja mais de acordo com o que pensamos.
Como diz Paulo Queiroz, problemas estruturais exigem soluções estruturais. E não vi, pode ser que tenha existido, nenhum cartaz denunciando ou discutindo o sistema em si. Eu vi o Collor ser demitido (tinha 11 anos na época, não sou tão velho assim) e acreditei que aquele exemplo serviria para todos os pretendentes a governante deste país, afinal, o recado era claro. Pra contradizer isso (a história às vezes gosta de bater na cara), o líder dos “cara-pintadas é um dos investigados na operação lava-a-jato.
Reclama, gente! Desabafa! Mas não esqueça que há regras. Essas regras não são simples defesas dos picaretas, são garantias essenciais ao saudável funcionamento da democracia (conquistada por nós a tão duras penas).  
Então assim: respeita o coleguinha, ele tem direito de pensar o que quiser; mas não se cobre “ter um lado”. Não existem só esse lados aí não. Haverá quantos lados quisermos.

Ah!  Qual é o meu lado?! Xiiiii, você não entendeu foi nada!  

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Sobre o Brasil e Chile (só escrevi sobre esse jogo! Eu acho...)

Sou da galera das lágrimas. Choro por qualquer duplo twist carpado, por qualquer perseverança altiva diante da limitação imposta, por qualquer câmera que se aproxima, calculadamente, dos olhos marejados do indivíduo filmado. Claro, na penumbra do cinema, sozinho em casa ou no vendaval de poeira, fico mais confortável. Mas choro quase com a mesma naturalidade de quem sorri. Mas o riso, ainda que sem sentido, goza do prestígio; enquanto ao choro só recompensam com desprezo. Por quê? Sei lá! Seria, no mínimo, leviano tentar explicar o choro dos nossos atletas a partir de uma análise do que supostamente compõe o caráter nacional, bem como o seria um exercício contrário. Ando muito desconfiado de todos os conceitos generalizantes acerca de quaisquer corpos sociais (exceto do caráter perverso do modelo de exploração do homem pelo homem adotado por nós). Então irei comentar apenas superficialmente sobre algumas impressões minhas, excluindo a evidente analogia com os jogadores de 50, os quais até seus últimos dias tinham pesadelos com o fatídico jogo do “maracanazzo”.
Quando fomos para os pênaltis, talvez também pela dramaticidade da situação agravada pela bola na trave no finalzinho da prorrogação, tive meus olhos tomados por um líquido conhecido (tentei segurar, mas queria mesmo era berrar, pular na minha cama e enfiar a cara no travesseiro, encharcá-lo, não pude). Nem vi, naquele momento, a posição do nosso capitão, tampouco as lágrimas prévias do nosso goleiro. Passou um filme na minha cabeça. Era parecido, imagino, com o que passou na sua, na de tantos outros brasileiro, inclusive, pasmem!, no imaginado pelos jogadores. Nosso país adora futebol. Não importa se isso nos faz piores ou melhores, é um fato. Aí a festa é aqui, o maior evento do futebol na nossa casa, depois de tudo o que nos custou (em todos os sentidos), tá lindo, a festa tá massa! Todo mundo curtindo, não tenho por costume ser um dos primeiros a ir embora. Vi, de forma muito clara, a possibilidade de ser expulso, convidado a sair da festa que tanto esperei (eu esperei e quem não queria passou a achar o máximo). Pensei na nossa gente toda, nas nossas crianças, nos nossos adultos tão felizes, infantilmente alegres e entretidos, tendo que apenas observar a galera alienígena brincar com a nossa bola, a brazuca. Não é justo, pensei, mesmo resignadamente sabedor do pouco compromisso da vida com a justiça, clamei por ela (como se os chilenos também não merecessem essa alegria, mas isso é outra história). Poxa, quero brincar pelo menos mais um pouco!
Vieram as cobranças (já sabemos como foram) e... passamos! Podemos ficar mais um pouco! O episódio teve um final feliz, um alento redentor! O peso do mundo saía, abruptamente, de nossas costas. Um choque de emoções desses não justifica um chorinho de alegria, de alívio, de vitória, de puta que pariu a gente ganhou, caralho!? Problema emocional tem quem acha que isso não é motivo.
Quanto ao nosso capitão, sempre achei que seria uma puta atitude o cara que não estivesse se sentindo seguro para cobrar um pênalti dizer, corajosamente, que não quer bater. Alguém acha que foi fácil pra ele tomar aquela decisão? É tranquilo dizer pro mundo inteiro que está se borrando todo diante da pressão? É óbvio que não é. Não foi pro Thiago. Thiago foi um gigante, mas tratado como um rato. Ele me representa muito! Mas ele é o capitão! diz o estúpido condicionado a acreditar que o líder é aquele ser autoritário, sem emoções, inabalável (ser escroto não é um traço de liderança, precisamos rever isso).
Se não chora é um mercenário que não entende o que é defender a seleção brasileira. É muita xaropice pra um povo só, meu deus!
Estou pronto pra chorar de novo. Ganhando ou perdendo, eu quero é chorar, sentir, viver, estar ali, experimentando, até o último segundo que a bola nos der, a nossa copa.
Valeu, meninos! Obrigado, caras! Parabéns, 11 valorosos brasileiros que são machos e fêmeas o suficiente pra dizer, em reações: queremos muito - muito mesmo! - ganhar essa porra dessa Copa pra gente! 

domingo, 10 de agosto de 2014

Dia dos garotos sem pais

Um garoto acordou perto da rodô. Talvez nem dormiu. Apagou, sucumbiu. Agora quer mais daquele mesmo.
 Não conheceu pré-escola, mas sempre desenhou bem. Como ninguém com quem convivia pensava que criança precisasse desenhar, menos ainda que desenho pudesse dar alguma coisa pra alguém daquele lugar -especialmente porque desenho é arte e ser artista é pra rico- começaram a recriminar as belas formas e curvas que fazia em qualquer lugar, com qualquer pedaço de tijolo, ou pitoco de lápis, ou qualquer coisa que riscasse. Nunca mais desenhou.
 Nunca teve bons professores, aliás, nunca teve professor algum. Nunca foi aluno. Sempre foi livre, livre pra não ser, nem sabia direito o que era esse negócio de ser.
 Tinha uma vista privilegiada da Esplanada, de seus palácios ao fundo, estava no centro do poder, dos três poderes independentes e harmônicos entre si. Não sabia nada acerca de privilégio (pelo menos não da forma conceitualmente elaborada ínsita ao termo, apesar de perceber que as crianças nas cadeirinhas dos veículos deviam ter uma vida com mais conforto do que tivera); nem entendia bem o que era poder (ainda que fosse subordinado aos garotos líderes do seu meio, à sua progenitora, ao poder microfísico), tampouco tinha ouvido falar sobre harmonia.
 Dói contar esta história, mas esse menino queria brincar como todos os meninos, ainda que não soubesse disso. Ele é uma criança contrafática, um menino-homem. Falo de uma criança de sete, talvez oito ou nove anos de idade. A sua cara queimada não faz dele menos criança, é apenas uma marca, um registro físico da sua história. 
 O leitor já deve imaginar, contudo, faço questão de anotar: ele não tem bonecos, não tem carrinhos, não joga vídeo-game e nem possui quaisquer outros brinquedos. Desde seu nascimento, permanece proprietário apenas de si mesmo, concretamente nem isso.
  Num certo dia, nosso herói encontrou outra brincadeira. Diverte-se com o crack, ser um craque, em qualquer coisa, não lhe foi facultado, menos ainda sonhar com isso. Como outros tantos garotos, talvez poderia... Nasceu privado desse direito. Reconhecida sua cara de pidão, seu destino foi escolhido: vai ser um ótimo pedinte e/ou vendedor de balas.
 É mentira que sonhar não custa nada. É impossível sonhar do nada. Os sonhos são construções feitas a partir do que vemos no real. Há um custo em ouvir, assistir, ficar sabendo de histórias fantásticas protagonizadas por personagens fictícios, porém reais para aqueles que compartilham de suas histórias. Sem duvidar ou querer fazer troça da inteligência do amigo, mas como acho essa parte da história muito importante, estou querendo dizer que a esse infante não foi permitido sonhar. Não tomou conhecimento de He-mam, Pégasus, Power Ranger, Naruto, Goku, Ben 10, Wolverine, Batman, tampouco Ulisses, Peri, Jesus, Buda, nem nenhum outro ser mitológico, metafísico fodão. Não que isso seja, em si, uma necessidade. O problema é que também não soube de nenhuma narrativa real sobre alguém que conseguiu um objetivo muito difícil. Como sempre foi tratado com rispidez, não desenvolveu sentimento algum por certa profissão (seus pais não trabalhavam, só viu médico no seu nascimento e, convenhamos, seria pedir demais que guardasse lembrança desse momento), não teve professores, policiais só o agrediram (verbal ou fisicamente, explícita ou simbolicamente), nunca soube que desenhista/pintor era uma profissão (considerando que este foi o único talento identificável no narrado até aqui, acho que pelo menos esta possibilidade deveria ter sido sugerida ao menino, mas não foi, em que pese a tristeza da constatação, isso o livrou de uma frustração, aliás, outra constatação é a de que sequer frustração ele podia ter). Só se quer aquilo que parece massa e possível, aquilo de que já se ouviu falar. Nunca acreditou ser possível voar e ter outros superpoderes.
Seu alívio imaginativo, sua transcendência do real hostil, só apareceu após o trago naquela pedra.
 Lembro que na primeira vez em que o vi ele estava pulando. Parecia ter continuado a pular, inconscientemente, depois do fim da apresentação de um número qualquer desses de sinal realizado para não parecer que está só pedindo um dinheiro para comprar outra pedra. Há um acordo tácito entre quem finge o número e quem finge que dá o dinheiro pela apresentação: ambos fingem que é disso que se trata, de uma recompensa por um espetáculo disponibilizado – não é dar um trocado pra ficar livre daquela figura maltrapilha que o importuna, nem é pedir dinheiro pra usar droga.
Moleque preto pulando nem sempre é saci ou capoeira. Moleque preto pulando causa medo. Moleque preto provoca porque não tão nem aí pra ele. 

Vem cá, guri! Bora brincar, bora desenhar, comer doce, sorvete, elma chips e o que mais nos aprouver. Aquele moleque é da minha e da sua responsabilidade também. Ele estar na rua é uma tragédia para todos, aceitar isso é aceitar o nosso fracasso enquanto sociedade, naturalizar então é de um cinismo desprezível (como todo cinismo o é, mas este é um caso grave). Somos partes de um todo, seja um bairro, uma cidade, um país, uma humanidade. Este garoto é um sujeito de direitos como todos nós. Fechar o vidro quando ele se aproxima não resolve o problema, só aumenta a sua culpa (se você ainda tem jeito, é claro), só o faz sentir-se mais marginal, mais aberração, mais inimigo.