Um garoto acordou perto da rodô. Talvez nem dormiu. Apagou,
sucumbiu. Agora quer mais daquele mesmo.
Não conheceu pré-escola, mas sempre desenhou bem. Como
ninguém com quem convivia pensava que criança precisasse desenhar, menos ainda
que desenho pudesse dar alguma coisa pra alguém daquele lugar -especialmente
porque desenho é arte e ser artista é pra rico- começaram a recriminar as belas
formas e curvas que fazia em qualquer lugar, com qualquer pedaço de tijolo, ou pitoco
de lápis, ou qualquer coisa que riscasse. Nunca mais desenhou.
Nunca teve bons professores, aliás, nunca teve professor
algum. Nunca foi aluno. Sempre foi livre, livre pra não ser, nem sabia direito
o que era esse negócio de ser.
Tinha uma vista privilegiada da Esplanada, de seus palácios
ao fundo, estava no centro do poder, dos três poderes independentes e
harmônicos entre si. Não sabia nada acerca de privilégio (pelo menos não da
forma conceitualmente elaborada ínsita ao termo, apesar de perceber que as
crianças nas cadeirinhas dos veículos deviam ter uma vida com mais conforto do que
tivera); nem entendia bem o que era poder (ainda que fosse subordinado aos
garotos líderes do seu meio, à sua progenitora, ao poder microfísico), tampouco
tinha ouvido falar sobre harmonia.
Dói contar esta história, mas esse menino queria brincar
como todos os meninos, ainda que não soubesse disso. Ele é uma criança
contrafática, um menino-homem. Falo de uma criança de sete, talvez oito ou nove
anos de idade. A sua cara queimada não faz dele menos criança, é apenas uma
marca, um registro físico da sua história.
O leitor já deve imaginar, contudo, faço questão de anotar:
ele não tem bonecos, não tem carrinhos, não joga vídeo-game e nem possui
quaisquer outros brinquedos. Desde seu nascimento, permanece proprietário
apenas de si mesmo, concretamente nem isso.
Num certo dia, nosso
herói encontrou outra brincadeira. Diverte-se com o crack, ser um craque, em
qualquer coisa, não lhe foi facultado, menos ainda sonhar com isso. Como outros
tantos garotos, talvez poderia... Nasceu privado desse direito. Reconhecida sua
cara de pidão, seu destino foi escolhido: vai ser um ótimo pedinte e/ou
vendedor de balas.
É mentira que sonhar não custa nada. É impossível sonhar do
nada. Os sonhos são construções feitas a partir do que vemos no real. Há um
custo em ouvir, assistir, ficar sabendo de histórias fantásticas protagonizadas
por personagens fictícios, porém reais para aqueles que compartilham de suas
histórias. Sem duvidar ou querer fazer troça da inteligência do amigo, mas como
acho essa parte da história muito importante, estou querendo dizer que a esse infante
não foi permitido sonhar. Não tomou conhecimento de He-mam, Pégasus, Power
Ranger, Naruto, Goku, Ben 10, Wolverine, Batman, tampouco Ulisses, Peri, Jesus,
Buda, nem nenhum outro ser mitológico, metafísico fodão. Não que isso seja, em
si, uma necessidade. O problema é que também não soube de nenhuma narrativa
real sobre alguém que conseguiu um objetivo muito difícil. Como sempre foi
tratado com rispidez, não desenvolveu sentimento algum por certa profissão
(seus pais não trabalhavam, só viu médico no seu nascimento e, convenhamos,
seria pedir demais que guardasse lembrança desse momento), não teve
professores, policiais só o agrediram (verbal ou fisicamente, explícita ou
simbolicamente), nunca soube que desenhista/pintor era uma profissão
(considerando que este foi o único talento identificável no narrado até aqui,
acho que pelo menos esta possibilidade deveria ter sido sugerida ao menino, mas
não foi, em que pese a tristeza da constatação, isso o livrou de uma
frustração, aliás, outra constatação é a de que sequer frustração ele podia
ter). Só se quer aquilo que parece massa e possível, aquilo de que já se ouviu
falar. Nunca acreditou ser possível voar e ter outros superpoderes.
Seu alívio imaginativo, sua transcendência do real hostil, só
apareceu após o trago naquela pedra.
Lembro que na primeira vez em que o vi ele estava pulando.
Parecia ter continuado a pular, inconscientemente, depois do fim da apresentação
de um número qualquer desses de sinal realizado para não parecer que está só
pedindo um dinheiro para comprar outra pedra. Há um acordo tácito entre quem
finge o número e quem finge que dá o dinheiro pela apresentação: ambos fingem
que é disso que se trata, de uma recompensa por um espetáculo disponibilizado –
não é dar um trocado pra ficar livre daquela figura maltrapilha que o
importuna, nem é pedir dinheiro pra usar droga.
Moleque preto pulando nem sempre é saci ou capoeira. Moleque
preto pulando causa medo. Moleque preto provoca porque não tão nem aí pra ele.
Vem cá, guri! Bora brincar, bora desenhar, comer doce,
sorvete, elma chips e o que mais nos aprouver. Aquele moleque é da minha e da
sua responsabilidade também. Ele estar na rua é uma tragédia para todos,
aceitar isso é aceitar o nosso fracasso enquanto sociedade, naturalizar então é
de um cinismo desprezível (como todo cinismo o é, mas este é um caso grave).
Somos partes de um todo, seja um bairro, uma cidade, um país, uma humanidade.
Este garoto é um sujeito de direitos como todos nós. Fechar o vidro quando ele
se aproxima não resolve o problema, só aumenta a sua culpa (se você ainda tem
jeito, é claro), só o faz sentir-se mais marginal, mais aberração, mais
inimigo.