domingo, 31 de março de 2013

Ele queria ser o Ben Dez


Ele queria o ser o Ben Dez (como costumeiramente falamos no Brasil). De fato, não era. Poderia ser. No entanto, podia transformar-se em heróis-monstros com poderes especiais, aptos a combater e vencer inimigos malvadões que, eventualmente, viessem a agredir outros habitantes do universo - em regra, seres de boa índole e indefesos.
Seu pai já quis ser o He-Man; sua mãe, a She-Ha; os gregos, Ulisses; outros, outros.
Heróis são necessários. Às vezes, são deuses (onipotentes, vingativos, solidários, entidades, Sol, anjos, demônios e tudo mais), noutras, personagens reconhecidamente literários, ficcionais.
Betinho queria fazer com que papai e mamãe não brigassem mais, que a sua bagunça se arrumasse num só comando seu, que a van em na qual vai pra escola voasse sobre os outros carros e chegasse logo.
Por vezes, tentava transformar-se apertando os botões do relógio igual ao do seu ídolo (réplica, brinquedo, não pra ele, claro). Ganhou esse equipamento, junto com outros acessórios que constituem a armadura (?), após um ano de bom comportamento: interrompeu birras incipientes, comeu coisas verdes, emprestou brinquedos aos amiguinhos, foi dormir (ou pelo menos foi pra cama) no horário recomendado (imposto) e fez tarefas escolares. Papai Noel, reconhecendo seus méritos e sacrifícios, atendeu ao pedido - reiterado tantas vezes ao longo do ano.

Pasmem, amigos! Não funcionava, ou seja, Betinho não passava pelas mutações desejadas, vendidas.
Ocorre que, segundo seus pais, algumas vezes sofreu metamorfoses. Os progenitores ficavam assustados: - Nossa! Quem é você?! Perguntavam. O menino logo os tranquilizava: - Calma, gente! Sou eu, Betinho. Momentos de regozijo (vocábulo bastante infanto-juvenil esse, né?) ele vivia.

Ocorre que nosso protagonista começou a desconfiar das informações dos seus ascendentes de primeiro grau. Além dos questionamentos de seu irmão mais velho, Ricardo, sempre a negar estar diante de uma criatura de outro planeta e, o pior, fazia o que mais detestava: o chamava de neném da mamãe. Após a ofensa, nossa tentativa de redentor olhava para seus braços e via aqueles membros curtos e frágeis de sempre, não havia como socar o grandalhão mais velho, tampouco soltar metais, fogo, água, estalactites em sua direção.

Não bastasse isto, um certo dia, refugiado em sua base secreta (embaixo da cama), viu sua mãe entrar em seu quarto, aproximar-se de seu leito e sair. O que ela não sabia era que ele aguardava a Fada do Dente, queria conversar com alguém que, como ele, estava para além dos limites deste mundo. Não viu nada diferente em cima da cama, mas algo o mandou levantar o travesseiro, sob o qual há pouco deixara seu último dente de leite – como aprendera desde o primeiro osso bucal amolecido, ato que sempre lhe rendeu R$ 2,00. O seu canino superior esquerdo não estava mais ali, apenas os tais R$ 2,00. Não podia acreditar que a pessoa (ou as pessoas, já que um casal é uma pessoa só, seu pai também participara daquilo) o enganara esse tempo todo – concluiu que, tal como Papai Noel, Coelhinho da Páscoa, Cuca e o Bicho-papão, essa tal fada também era mais um engodo, um embuste forjado para fazer com que ele fizesse o que seus pais queriam.

Reflexivo, apertou mais uma vez seu relógio, bracelete, sei lá, diante do espelho do guarda-roupa: nada. Era o mesmo: pequeno, magro, cabelo cortado daquele jeito de sempre (do qual não gostava nada). Ele não tinha poderes acionáveis a qualquer momento para resolver problemas.

Quando estava crente das habilidades excepcionais adquiridas, imaginou-se realizando ações que salvaguardavam coletividades em situações de risco (sonhos pouco comuns para um garoto daquela idade), dentre elas: desviar rios, córregos e nascentes para perto das pessoas que, pelo que havia entendido do noticiário, morriam de cede, não conseguiam colher/plantar por falta de água; iria distribuir alimentos, conseguidos nos mais diversos lugares do planeta por meio de seus diversos poderes, àquelas crianças das quais sua mãe sempre falava que queriam muito comer a comida que recusava; ia, ainda, destruir as armas do mundo para que, como seu amiguinho da escola sempre falava, as mortes e as guerras acabassem neste planeta.

No dia seguinte, Bentinho acordou cedo para ir à escola; não comeu nada, ficou esperando, pronto, na sala. A revolta com os pais já quase não existia mais, apenas uma decepção com um monte de coisas que nem sabia explicar direito. Concluiu que o Ben Dez não pertencia só à Terra, que combatia apenas seres extraterrestres, não intervinha em conflitos entre iguais, como os que ocorriam aqui, ficou com vontade de ser um humano com grandes poderes humanos para enfrentar os humanos do mal, já que aqui são eles, os humanos, que devem resolver seus problemas.