quarta-feira, 3 de junho de 2015

Pra cria

Neném, o mundo no qual você vai nascer não é exatamente aquele no qual o papai queria que chegasse. Explico a seguir.
O noticiário recente informa que houve atos de terrorismo praticados por fanáticos religiosos (se é que “fanático religioso” não é uma redundância). Alguns correligionários de grupos terroristas, os quais têm no Islã sua base de apoio teórico, mataram jornalistas (de um jornal satírico francês) dizendo que estariam vingando Maomé.
Olha, papai não curte religião nenhuma, daqui a um tempo você vai ver o quanto isso é difícil pra quem pensa assim. Por isso, mas não só por isso, achei um absurdo tal ato. Esse fato serviu para reforçar ainda mais minha crença de que as religiões fazem as pessoas fazerem coisas insanas, porque as religiões, em si, são insanas. Mas você pode ter a crença que quiser, vou respeitar. Essa é a primeira coisa que quero lhe ensinar: não importa o que você acha certo ou errado, todos podem crer, fazer, pensar, amar ou odiar o que quiser, você deve aceitar, respeitar, tolerar é muito pouco. Cada um faz da vida o que quer. Além disso, e por isso também, você não deve admitir nenhum tipo de interferência ou imposição sobre suas ideias e crenças.
Filho, tá faltando água. Aqui no nosso país tem um monte de água, mas não necessariamente no lugar em que os seres humanos precisam para poder consumi-la. Aliás, no nosso Brasil tem um monte de coisas e ideias fora do lugar. Não se acostume com isso nunca, tente sempre ajeitar, mesmo que essa tarefa pareça impossível. Desistir não nos cai bem. Desistir é paia, filho. Deixa o que tiver aí dentro falar, que o teu impulso seja o teu guia.
Tem aumento de impostos, de juros, de tudo, menos do salário do papai e da mamãe. A Dilma venceu, votei nela. Não havia a opção “correta” na urna, foi o que deu pra fazer. Ainda estamos num estágio de evolução no qual pra ser um candidato com alguma chance de vitória tem que ser meio mau caráter.
Também saiu uma pesquisa dizendo que em 2016 o 1% mais rico da população vai ter 52% da riqueza do planeta. Filho, isso é o maior mal desse mundo! Não ache isso normal nunca, por favor! A desigualdade é a causa de quase todos os males da humanidade. Você não vai consertar isso, mas nem por isso vai deixar de lutar pra mudar essa realidade absurda!
A violência tá bombando por aqui. As pessoas matam por qualquer coisa. Não comprarei arma alguma. A nossa defesa será o amor, a palavra, afinal, a agressão e a estupidez não devem prevalecer. Ainda que estejam por aí se impondo, não ceda a elas. Nem eu, tampouco sua mãe, jamais nos deixamos levar por esses sentimentos típicos dos covardes e arrogantes.

Filho, Brasília continua com um céu lindo, tem um monte de gente legal tentando construir um mundo melhor. Tem mais pessoas com mais acesso a bens de consumo essenciais. A arte continua necessária. Viver, filho, é uma experiência muito louca, intensa, uma dádiva e uma carga. Não posso prometer que será feliz (gente feliz demais tem algum problema! Opinião do pai), mas digo a você, cria: estou aqui! Conta comigo, cara! Seja o que quiser, mas, imploro, seja uma pessoa massa! Nem o conheço, mas já o considero pacas, seu feto fofo!

Ser 44 ou cinza é uma bosta.

É oito ou oitenta! Ou é preto ou é branco! E se não? E o que falar dos que são 32, 52 ou 44? Qual o lugar do grafite, do prata, do dálmata ou do cinza? Detesto quem não se posiciona. Mas, necessariamente, temos que aderir a uma das posições extremas oferecidas? Só existem elas? Certamente não. Sim, você já adivinhou, vou falar sobre essas paradas que estão rolando.
Pensando nisso, não ecoar o discurso do “Fora Dilma” não faz de você um PTralha. Criticar o governo ou achar que as pessoas podem ou devem protestar quando insatisfeitas não faz de você um tucano, coxinha, adepto da oposição ou golpista.
“- Tá. Então de que lado você está?” Quem?! Eu?!
Não, eu não estou “do lado do Brasil” (seria muito arriscado apoiar um conceito tão aberto, impreciso, genericamente associável tanto ao seu potencial agropecuarista, quanto à quantidade de reservas naturais preservadas; tanto ao seu caráter extremamente tolerante, quanto à realidade violenta e preconceituosa; tanto ao pôr-do-sol, quanto ao noroeste etc.) . Tampouco estou do lado da “mídia oficial” (a Globo, a Abril, a Band, os Civitas, a Record, o Correio Braziliense, ou qualquer outro grande grupo de comunicação do país ocupa lugar minimamente afetuoso ou respeitoso do meu coraçãozinho). Menos ainda apoio os interesses egoísticos das elites nacionais “que há mais de 500 anos saqueiam as riquezas e os espoliados desta terra” (acho nossa elite preguiçosa, incompetente e colonizada demais, também acho que a nação brasileira é bem mais jovem, se é que efetivamente ela já se formou; pra mim, tem cento e poucos anos que estamos de fato tentando construir um projeto de país). Juro que não sou a favor das intenções imperialistas veladas que operam (?) por aqui (sobre isso não irei comentar nada, espero que entendam a minha incapacidade em argumentar contra proposição tão insubsistente).
Também não sou um “governista alienado” (achar o máximo os avanços sociais implementados pelo governo petista nos últimos anos não faz de mim um filiado pago ou um ingênuo útil). Nem diga (se quiser dizer, também, tudo bem) que sou um esquerdistinha dissimulado (seja porque o PT não é um governo de esquerda, seja porque não me furto em afirmar que sim, sou adepto aos valores historicamente defendidos por essa corrente, seja porque estou muito distante de muitos autointitulados esquerdistas, seja porque acho a direita cínica, sem graça e cretina ao afirmar que o sucesso é uma questão de mérito, dentre tantas outras coisas).
Acabo de perceber que, ao tentar dizer o que sou, estou, na verdade, dizendo o que não sou. É uma possibilidade.
Em síntese, não estou ao lado de nenhum dos dois únicos lados supostamente existentes. Adoro o povo na rua, não interessa que povo é esse, acredito que o direito à livre manifestação é um valor essencial à democracia, à liberdade, à convivência harmônica entre os diferentes. É claro que essa liberdade tem limites, em especial aqueles referentes ao direito de outros grupos sociais a não serem agredidos (não acho aceitável uma manifestação que defenda o racismo, o ódio, a intolerância etc.). Mas sair na rua e dizer que está puto com o governo, com a corrupção (por mais bobo que isso pareça ser) ou com a presidenta é, sem dúvida alguma, legítimo (viu?! usei “sem dúvida alguma”, não sou tão vaselina assim).
Agora, querer retirar, na marra, uma pessoa legitimamente eleita pela maioria dos brasileiros (53 milhões de pessoas votaram nela, inclusive eu), não me parece pertinente. Não que as pessoas não possam pedir isso, apenas não acho que seria algo bacana, tranquilo, é assim mesmo, "vamos dar uma lição nessa corja". Temos regras. Aliás, só por isso somos da mesma galera. Essas regras foram combinadas antes do início do jogo. Estar insatisfeito com um governante não possibilita a deposição do mesmo. No parlamentarismo isso seria dentro das regras, sabia? Mas a gente nem discute essa possibilidade. Queremos mudar o jogo enquanto ele está rolando e não cogitamos mudar as regras para que o próximo seja mais de acordo com o que pensamos.
Como diz Paulo Queiroz, problemas estruturais exigem soluções estruturais. E não vi, pode ser que tenha existido, nenhum cartaz denunciando ou discutindo o sistema em si. Eu vi o Collor ser demitido (tinha 11 anos na época, não sou tão velho assim) e acreditei que aquele exemplo serviria para todos os pretendentes a governante deste país, afinal, o recado era claro. Pra contradizer isso (a história às vezes gosta de bater na cara), o líder dos “cara-pintadas é um dos investigados na operação lava-a-jato.
Reclama, gente! Desabafa! Mas não esqueça que há regras. Essas regras não são simples defesas dos picaretas, são garantias essenciais ao saudável funcionamento da democracia (conquistada por nós a tão duras penas).  
Então assim: respeita o coleguinha, ele tem direito de pensar o que quiser; mas não se cobre “ter um lado”. Não existem só esse lados aí não. Haverá quantos lados quisermos.

Ah!  Qual é o meu lado?! Xiiiii, você não entendeu foi nada!