quarta-feira, 28 de maio de 2014

Realmente sempre foram muitas as ideias fora do lugar: a Constituição de 1824

(desculpem-me por algumas das referências, especialmente o Villa, na época não sabia nada sobre o rapaz)

A história das ideias no nosso país sempre foi marcada por um descompasso, um desacerto, uma contradição entre o pensamento e a realidade dos fatos. Quanto ao Direito, por exemplo, não é raro ouvirmos expressões semelhantes a “as leis no Brasil são muito avançadas, só não são cumpridas”, “o salário-mínimo da nossa constituição prevê um valor suficiente para bancar um tanto de coisa que na realidade é impossível”. Ou seja, as discussões gravitam ao redor de valores e referenciais típicos de realidades sócio-economicamente mais desenvolvidas, distintas da nossa.

Nesse sentido, em um ensaio clássico, As ideias fora do lugar, no qual discute a relação entre as ideias iluministas e a realidade arcaica e escravocrata no Brasil do século XIX, bem como suas implicações na produção literária, Roberto Schwarz desenvolve um raciocínio por meio do qual explica como essa contradição é, ao mesmo tempo, dissimulada em alguns discursos e práticas, mas,  também, parte constituinte do nosso processo de desenvolvimento, segundo ele:

É claro que a liberdade do trabalho, a igualdade perante a lei e, de modo geral, o universalismo eram ideologia na Europa também; mas lá correspondiam às aparências encobrindo o essencial – a exploração do trabalho. Entre nós, as mesmas ideias seriam falsas num sentido diverso, por assim dizer, original. A Declaração dos Direitos do Homem, por exemplo, transcrita em parte na Constituição Brasileira de 1824, não só não escondia nada, como tornava mais abjeto o instituto da escravidão.
(...)
Além do que, havíamos feito a Independência há pouco, em nome de ideias francesas, inglesas e americanas, variadamente liberais, que assim faziam parte da identidade nacional. Por outro lado, com igual fatalidade, este conjunto ideológico iria chocar-se contra a escravidão e seus defensores, e o que é mais, viver com eles. No plano das convicções , a incompatibilidade é clara, e já vimos exemplos. (SCHWARZ, p. 13/14)
(...)
Ao longo de sua reprodução social, incansavelmente o Brasil põe e repõe idéias européias, sempre em sentido impróprio. (p. 29)



Fica evidente a contradição entre o discurso de políticos e intelectuais nacionais com o que ocorria de fato naquela época. Os intelectuais do país eram formados, em sua grande maioria, na Europa e de lá traziam suas referências, suas preferências. Dessa forma o modelo, o ideal que se buscava alcançar aqui era o padrão estrangeiro. Ocorre que, como veremos, importar ideias é mais fácil do que transformar a realidade, assim, transformamos essas ideias por meio de omissões e desvirtuamentos dos pontos centrais.

Neste trabalho iremos analisar de que forma a Constituição de 1824 é reflexo desse caráter do pensamento nacional. Duas premissas essenciais do pensamento liberal estão no discurso, mas não no conteúdo efetivo dessa Carta, quais sejam: a separação dos poderes e a liberdade dos cidadãos.   

A primeira constituição do país, outorgada em 1824 pelo então Imperador D. Pedro I, teve um antecedente fundamental que foi a Assembléia Constituinte ocorrida em 1823. Essa assembléia foi produto de um conjunto de articulações políticas e viria a ser um marco no processo de consolidação da independência do país.

Ainda que tenha sido dissolvida pelo Monarca, funcionou como uma demonstração de autonomia política da ex-colônia e, ao mesmo tempo, na sua constituição e desenvolvimento mimetizou as contradições que marcaram e marcam o nosso desenvolvimento sócio-político. (BONAVIDES, 2004, p. 99).

O discurso de abertura da Assembléia, feito pelo Imperador, ilustra a contradição entre os ideais liberais de separação de poderes, fundamental para um estado constitucional de direito, e o caráter autoritário e monocrático que se observa na prática:

Como Imperador Constitucional, e mui especialmente como Defensor Perpétuo deste Império, disse ao povo no dia 1º De dezembro do ano próximo passado, em que fui coroado e sagrado, que com minha espada defenderia a Pátria, a Nação e a Constituição, se fosse digna do Brasil e de mim. Ratifico hoje que mui solenemente perante vós esta promessa, e espero que me ajudeis a desempenhá-la, fazendo uma Constituição sábia, justa, adequada e executável, ditada pela razão, e não pelo capricho, que tenha em vista somente a felicidade geral, que nunca pode ser grande sem que esta Constituição tenha bases sólidas, bases que a sabedoria dos séculos tenha mostrado, que são verdadeiras para darem uma justa liberdade aos povos, e toda a força necessária ao Poder Executivo. (...)
Uma Constituição, em que os três poderes sejam divididos de forma que não possam arrogar direitos que lhe não compitam mas que sejam de tal modo organizados e harmonizados, que se lhes torne impossível, ainda pelo decurso de tempo, fazerem-se inimigos, e cada vez mais concorram de mãos dadas.
(...) espero que a Constituição que façais, mereça a minha imperial aceitação. (D. Pedro I, apud BONAVIDES, 2004, p. 48-49)


Assim, o discurso inaugural, em si, já anunciava essa incongruência entre as ideias: separação e autonomia de poderes e a necessidade de “aceitação imperial”.

Além disso, não havia uma unanimidade entre os ideais e anseios dos participantes dessa constituinte. Representavam a elite nacional: 19 eclesiásticos, 22 desembargadores, 23 bacharéis e 7 militares. Como se vê, nenhum “do povo”. Ainda que unidos pelo sentimento de valorização do novo país, de sua independência, divergiam quanto à possibilidade de instituição de um ministério executivo independente do monarca, assim como quanto aos valores e referências liberais. Havia conservadores, radicais e ponderados (Calmon, 1959, p. 1519/1520).

Paulo Bonavides explica que o conjunto cultural nacional à época da primeira constituinte sofria de uma precariedade de consciência cívica, influenciado, em alguma medida, pelo caráter de concessão e não de conquista da independência e ainda uma certa insegurança quanto a esta nova condição. Além disso, as condições sociais, produtos dos trezentos anos de exploração colonial, eram sofríveis (2004, p. 46/47). Assim, segundo o autor:
Uma constituinte derivada desse meio não poderia ser, por conseguinte, um modelo exemplar de aplicação das doutrinas do constitucionalismo na pureza abstrata do ideal.
(...)
Materialmente, as limitações tácitas ser tornavam mais estrondosas: confirmaram-se, de fato, no decurso da tarefa constituinte e sobretudo na crise de que resultou o colapso do poder do nosso primeiro órgão formal de soberania, desbaratado por um golpe de Estado, fruto da aliança da tropa com o Imperador, ambos naquela altura instrumentos da ideia absolutista.
(...)
Uma Constituinte à semelhança daquela que Siéyés teorizou para a França do século revolucionário não existiu nem poderia existir no Brasil de D. João VI e Pedro I.
Se tivermos sempre os olhos fitos na realidade brasileira da época, compreenderemos que, sem embargo de toda a força e vocação das elites para as altitudes abstratas do ideal de liberdade e para a rejeição do colonialismo, não havia como o Reino se mover fora da esfera de limitações contidas nos pressupostos fáticos da sociedade e do poder dinástico estabelecido. (BONAVIDES, 2004, p. 46)
  
No curso das discussões no interior da Assembléia Constituinte, ficou evidente o incômodo de grande parte de seus componentes com as limitações prévias impostas pelo imperador. Estava claro para os constituintes que a essência da autonomia dos poderes deveria ser preservada. No entanto, D. Pedro I monitorava suas ações e, percebendo a ameaça ao absolutismo que desejava manter, em que pese seu discurso ser no sentido da tripartição dos poderes, no dia 12 de novembro de 1823, seis meses após sua inauguração, cercando com suas tropas o edifício no qual funcionava, encerrou a primeira Assembléia Constituinte do país.

Feito esse brevíssimo relato acerca do evento fundamental que a precedeu, discuto agora o objeto de análise deste artigo, a Constituição Brasileira de 1824 (Carta da Lei de Março de 1824) que, segundo Pedro I, seria “duplicadamente liberal”.

Considerando a insatisfação gerada no âmbito da sociedade brasileira pela dissolução da Assembleia Constituinte, o Imperador, no intuito de resgatar em alguma medida a imagem de liberal que queria representar, constituiu uma comissão responsável pela elaboração do novo texto constitucional e, num curto período de tempo após interromper os trabalhos legislativos, outorgava a nova constituição do país.

Essa Constituição teve grande influência do texto elaborado na constituinte, não fosse por uma inovação que viria a ser determinante no desvirtuamento do princípio constitucional mais relevante à época, que era a limitação dos poderes do imperador e a submissão deste às leis do país: o Poder Moderador. Que, nos termos daquela Carta, consistia em:
Do poder Moderador
Art. 98. O Poder Moderador é a chave de toda a organização política, e é delegada privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e eu seu Primeiro Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independência, equilíbrio e harmonia dos mais poderes políticos.
Art. 99. A Pessoa do Imperador é inviolável e sagrada: ele não está sujeito a responsabilidade alguma.
Art. 100. Os seus títulos são “Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil” e tem o tratamento de Majestade Imperial.
Art. 101. O Imperador exerce o Poder Moderador:
I – Nomeando senadores, na forma do Art. 43.
II – Convocando a Assembléia Geral extraordinariamente nos intervalos das sessões, quando assim o pede o Império.
III – Sancionando os Decretos e Resoluções da Assembléia Geral, para que tenham força da Lei: Art. 62.
IV – Aprovando e suspendendo inteiramente as Resoluções dos Conselhos Provinciais.
V – Prorrogando ou adiando a Assembléia Geral e dissolvendo a Câmara dos Deputados, nos casos em que o exigir a salvação do Estado, convocando imediatamente outra que a substitua.
VI – Nomeando e demitindo livremente os ministros de Estado.
VII – Suspendendo os magistrados nos casos do Art. 154.
VIII – Perdoando e moderando as penas impostas aos réus condenados por sentença.
IX – Concedendo anistia em caso urgente e que assim aconselhem a humanidade a bem do Estado. 

Vê-se do conteúdo acima que o Monarca arrogava a si o controle sobre todos os demais poderes, além de não poder ser responsabilizado. O controle do judiciário consistia no arbítrio da nomeação e exoneração dos magistrados. O legislativo era controlado por meio do poder de nomear os senadores, do poder de dissolver, a qualquer momento, a Câmara dos Deputados, assim como do poder de vetar as leis originárias do legislativo.

Sobre este poder, Bonavides explica que:
Com efeito, havia fundadas razões para o temor e a desconfiança de federalistas liberais e republicanos, com respeito àquela inovação que a praxe constitucional de outros países desconhecia. Pelo menos a da Europa, cujas instituições nos haviam servido de modelo. Demais, fora ela colhida nos livros, extraída das reflexões de um publicista-filósofo e prosador. Fizera com o Império sua estréia, fadada, porém a produzir resultados imprevisíveis.
Quem lê a Constituição do Império há de averiguar que havia justificados fundamentos para convalidar o receio dos que opugnavam a introdução do novo poder. Seu ingresso no texto da Constituição, qual ocorrera, importava já uma ofensa ao princípio concebido para fazer a liberdade e a harmonia dos poderes. O Poder Moderador fora aqui introduzido de forma diferente, tamanha a soma, a profundidade e a extensão das competências assinaladas ao seu titular, que não era de um só poder, senão de dois, visto que em sua pessoa vinha acumular-se também a titularidade executiva. (BONAVIDES, 2004, p. 106)

Se a inspiração desta constituição foi, ao menos em tese, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, esse dispositivo afronta o conteúdo do seu art. 16 que dispõe “Qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição.”, ou seja, nesta ótica, não tínhamos uma constituição. Isto porque, ainda que o nosso texto constitucional de 1824 tivesse dispositivos que faziam referências a quais eram as competências e atribuições de cada um dos poderes, a instituição de um “super-poder”, o moderador, que se sobrepõe a todos os demais de forma a controlá-los e retirar deles qualquer autonomia, fez com que tivéssemos, na prática, um absolutismo travestido de legitimidade constitucional.

Dessa forma, o mesmo D. Pedro I que disse “Amo a liberdade e, se me visse obrigado a governar sem uma Constituição, imediatamente deixaria de ser imperador, porque quero governar sobre corações com brio e honra, corações livres”, impunha a esse mesmo “povo livre” o uso das forças militares no combate à liberdade de expressão daqueles que se opunham a ele, assegurava a manutenção do regime escravocrata e, como já dito, centralizava os poderes e governava de forma monocrática (VILLA, 2011, p. 20-21). Refletindo acerca dessas contradições, o historiador Marco Antônio Villa, no livro A História das Constituições Brasileiras, ilustra esse cenário quando narra o seguinte:
No fim da Constituição, o imperador incluiu algumas garantias políticas e civis no artigo 179. Mesmo perseguindo, ameaçando e prendendo jornalistas que criticavam seus atos, a Carta fala que “todos podem comunicar os seus pensamentos por palavras, escritos, e publicá-los pela imprensa, sem dependência de censura”. Não é o que a prática imperial demonstrou. Em junho de 1823, o jornalista Luís Augusto May, redator de A Malagueta, acreditando no “liberalismo” do imperador, fez duros ataques ao seu governo. Em vez do respeito à liberdade de imprensa, foi alvo de um bárbaro espancamento na própria casa por um grupo de quatro mascarados (algumas fontes informam que o próprio Pedro I teria participado do ato). Ironicamente, o mesmo artigo constitucional dispõe que “todo cidadão tem em sua casa um asilo inviolável.” (VILLA, 2011, p. 20)   

Toda essa inversão é contrária ao ideário propugnado pelo Constitucionalismo, especialmente no que refere às garantias que deveria assegurar aos cidadãos, no sentido de não ficar mais ao arbítrio do soberano. Essa é a premissa básica do Estado moderno, no que se opõe ao Estado absoluto e, no nosso caso, é violada no próprio texto constitucional.

A leitura do texto de nossa primeira constituição permite observar que a contradição entre “ideias ilustradas e realidade obscura” não se dá apenas no nível abstrato, no sentido de que o texto tem um conteúdo e a sua aplicação não ocorre ou se acontece é de outra forma. Além de não haver esse casamento entre o ideal disposto no texto normativo e os fatos, o que, diga-se, também ocorreu nos países dos quais se tenta copiar o modelo, o nosso próprio texto, no seu interior, é contraditório. A Constituição informa que “Art. 3º O seu Governo é Monárquico, Hereditário, Constitucional e Representativo.”, no entanto, no próprio desenvolvimento do novo estatuto, os únicos que são efetivamente assegurados são o caráter monárquico e o hereditário, ou seja, os valores existentes no modelo absolutista.

Isto porque, como dito anteriormente, não é propriamente constitucional, haja vista não atender aos quesitos básicos do que se entendia como Estado constitucional; nem é representativa, considerando os critérios censitários para que se pudesse participar do processo eleitoral, além de a Câmara dos Deputados, a casa dos representantes, poder ser dissolvida a qualquer tempo pelo monarca.

Fazendo um resumo de como as ideias liberais e de monarquia constitucional regrediram ao absolutismo materializado na constituição de 1824, Pedro Calmon explica que:
Choque de ideias
Submersa a agitação democrática na opressão do governo pessoal, ressurgiram, como por encanto, as doutrinas do absolutismo, da legitimidade dos soberanos, da submissão do povo à vontade ilimitada.
Dir-se-ia que a influência estrangeira obedecia a um movimento de translação.
Em 1821, respirava-se o liberalismo francês, de 89; em 1822, o constitucionalismo inglês, modelado pelo parlamento e pela coroa, que o respeitava; em 1823, a Santa Aliança, com a reivindicação dos reis, segundo os princípios da “vilafrancada” em Portugal, das cortes de Luis XVIII, do Czar Alexandre, de Metternich... Evidentemente D. Pedro I não tinha a docilidade de gênio, sequer a madura opinião dum sectário: o seu absolutismo foi impulsivo e momentâneo. Democracia para ele (e José Bonifácio) era anarquia... . Abateu o Congresso, que quisera destruí-lo; e, passado o incidente, voltava apressadamente a conciliar-se com os moderados de sua roda, alguns dos quais pusera no Conselho de Estado, para que o ajudassem a fazer a “sua” Constituição. (CALMON, 1959, p. 1526/1527).

Ou seja, as ideias eram adaptadas conforme o interesse dominante. Dentro do rol de influências externas possíveis o país adotava a que fosse mais compatível com o que se queria estatuir ou manter. Foi, portanto, dessa forma que chegamos à nossa primeira Constituição, contrariando ao que seriam os princípios essenciais da noção de constituição: um texto que não limitava poderes, nem assegurava a liberdade. Em estudo acerca da influência de Benjamin Constant no sistema político do império brasileiro, Silvana Mota Barbosa explica que:
Esta “tradição imperial” dizia respeito exatamente àquilo que era a base de toda organização política, aquilo que selava o pacto de criação de uma nação: a Constituição. Para o jurista Afonso Arinos de Melo Franco o Poder Moderador teria sido a maneira encontrada pelo Imperador para satisfazer sua sede de autoridade (...). Segundo o autor, o Poder Moderador teria sido, em sua origem, a materialização da necessidade de um poder forte concedido ao monarca, mas também legitimado pelas tendências constitucionais da época, quando Benjamin Constant era figura ainda respeitada e, talvez, a última palavra em termos constitucionais.
Raymundo Faoro também trabalhou essa questão mostrando como duas vertentes opostas, comuns à época eram impraticáveis no Brasil, sendo que a opção encontrada foi seguir a corrente doutrinária que surgia em Montesquieu, passava por Sieyes e foi definida em Constant: tratava-se de um “liberalismo sem soberania popular”, no qual o pacto não foi estabelecido nos termos em que pensava Rousseau, “que faziam o rei e a autoridade obra do país e não de condições pré-existentes”. Pelo contrário, a aclamação do Imperador foi anterior ao pacto e à própria nação.

Essas “ideias fora do lugar” passam, assim, por processos de conformação e juntam-se opostos inconciliáveis: tripartição e harmonia de poderes em oposição ao super-poder moderador; liberdade individual confrontada com a escravidão. Sobre esta última contradição passamos a discutir no próximo tópico.

Liberdade e escravidão

Dando prosseguimento à análise das contradições da Constituição de 1824, outra questão que surge é sua ineficiência em assegurar direitos humanos básicos àqueles que constituíam a grande maioria da população nacional, quais sejam, os escravos.

Segundo Skidmore (1998, p. 61/62), após a independência o país tinha no tráfico de escravos sua mais importante fonte de mão-de-obra e estava distante de ter uma burguesia próxima ao modelo europeu, especialmente porque aqui a economia era baseada nas produções da agricultura e na exploração mineral, sendo que os produtos dessas atividades eram, em seguida, comercializados por portugueses. Aqui também não havia atividade manufatureira. Nesse contexto, a principal relação de trabalho no interior do país era entre senhor e escravo.

O que se observou no país recém-independente foi um retrocesso quanto ao processo abolicionista. Um dos artigos do texto elaborado pela constituinte de 1823, que foi suprimido na Constituição de 1824, tratava exatamente da possibilidade de extinção da escravidão em território nacional:
Art. 253. A Assembléia terá particular cuidado em conservar e aumentar as Casas de Misericórdia, Hospitais, Rodas dos Expostos, e outros estabelecimentos de Caridade já existentes, e em fundar novos.
Art. 254. Terá igualmente cuidado de criar Estabelecimentos para a catequese, e civilização dos Índios, emancipação lenta dos negros, e sua educação religiosa, e industrial. (grifo nosso)

O texto que vigeu no país até 1891 não continha as palavras “negro” ou “escravo” e relacionadas, ou seja, havia uma omissão, um silêncio absoluto sobre aqueles que compunham a massa de trabalhadores do país. Em uma análise acerca de como essas ideias contraditórias se davam entre os formadores de opinião no país, Beatriz Galloti Mamigonian descreve uma intervenção do Deputado Raimundo José da Cunha Mattos, segundo ela:

No entanto, as discussões revelaram os contraditórios sentimentos em relação à abolição do tráfico de escravos. Ninguém ousou defender abertamente sua perpetuação, mas sintomática foi a longa intervenção do deputado por Goiás Raimundo José da Cunha Mattos, militar português que havia vivido 18 anos na costa africana antes de se transferir para o Brasil. Mattos reprovou a assinatura do tratado, por considerá-la inconstitucional e precipitada, e condenou a proibição do tráfico por ser prematura e prejudicial à economia do país. Não admitiu defender abertamente a continuação indefinida do comércio de escravos africanos diante dos espíritos esclarecidos pelas “luzes do século”, mas declarou ser esse “um mal menor”e assim arrolou todos os argumentos de defesa do tráfico e da escravidão: o comércio de prisioneiro de guerra era natural aos povos africanos e sobreviveria à proibição do comércio transatlântico; era melhor para os africanos serem escravos no Brasil do que prisioneiros de guerra e sujeitos à morte na África; e os escravos africanos eram extremamente necessários para o desenvolvimento da economia do Brasil, especialmente na impossibilidade de civilizar os índios ou de obter trabalhadores livres europeus. Cunha Mattos reservou boa parte do discurso para criticar a suposta filantropia britânica em relação aos africanos. (p. 220/221)

   Mamigonian conclui que durante o século XIX a política externa brasileira foi pautada pela resistência às exigências britânicas para que fosse abolido o tráfico negreiro. Ela afirma que, em que pese tentasse dar alguma satisfação aos ingleses sob o argumento de que isso se daria de forma gradual, o que o Estado brasileiro fez foi instrumentalizar e apoiar essa atividade, especialmente porque politicamente servia como um fator de manutenção da integração nacional, haja vista esta prática servir de elo de ligação entre as elites regionais e o comando central (Mamigonian, 2009, p.229/230).


CALMON, Pedro. História do Brasil: século XIX – conclusão – O império e a ordem liberal. Vol. V. Editora. Livraria José Olympio. Rio de Janeiro, 1959.

MAMIGONIAN, Beatriz Galloti. A proibição do tráfico atlântico e a manutenção da escravidão. In: O Brasil Imperial, volume I: 1808-1831. Org. Keila Gringerg e Ricardo Salles. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000.

Sk


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