(desculpem-me por algumas das referências, especialmente o Villa, na época não sabia nada sobre o rapaz)
A
história das ideias no nosso país sempre foi marcada por um descompasso, um
desacerto, uma contradição entre o pensamento e a realidade dos fatos. Quanto ao Direito, por exemplo, não é raro ouvirmos expressões semelhantes a
“as leis no Brasil são muito avançadas, só não são cumpridas”, “o
salário-mínimo da nossa constituição prevê um valor suficiente para bancar um
tanto de coisa que na realidade é impossível”. Ou seja, as discussões gravitam
ao redor de valores e referenciais típicos de realidades sócio-economicamente
mais desenvolvidas, distintas da nossa.
Nesse
sentido, em um ensaio clássico, As ideias
fora do lugar, no qual discute a relação entre as ideias iluministas e a
realidade arcaica e escravocrata no Brasil do século XIX, bem como suas
implicações na produção literária, Roberto Schwarz desenvolve um raciocínio por
meio do qual explica como essa contradição é, ao mesmo tempo, dissimulada em
alguns discursos e práticas, mas, também, parte constituinte do nosso processo de
desenvolvimento, segundo ele:
É claro que a
liberdade do trabalho, a igualdade perante a lei e, de modo geral, o
universalismo eram ideologia na Europa também; mas lá correspondiam às
aparências encobrindo o essencial – a exploração do trabalho. Entre nós, as
mesmas ideias seriam falsas num sentido diverso, por assim dizer, original. A
Declaração dos Direitos do Homem, por exemplo, transcrita em parte na
Constituição Brasileira de 1824, não só não escondia nada, como tornava mais
abjeto o instituto da escravidão.
(...)
Além do que,
havíamos feito a Independência há pouco, em nome de ideias francesas, inglesas
e americanas, variadamente liberais, que assim faziam parte da identidade
nacional. Por outro lado, com igual fatalidade, este conjunto ideológico iria
chocar-se contra a escravidão e seus defensores, e o que é mais, viver com
eles. No plano das convicções , a incompatibilidade é clara, e já vimos
exemplos. (SCHWARZ, p. 13/14)
(...)
Ao longo de
sua reprodução social, incansavelmente o Brasil põe e repõe idéias européias,
sempre em sentido impróprio. (p. 29)
Fica
evidente a contradição entre o discurso de políticos e intelectuais nacionais
com o que ocorria de fato naquela época. Os intelectuais do país eram formados,
em sua grande maioria, na Europa e de lá traziam suas referências, suas
preferências. Dessa forma o modelo, o ideal que se buscava alcançar aqui era o
padrão estrangeiro. Ocorre que, como veremos, importar ideias é mais fácil do
que transformar a realidade, assim, transformamos essas ideias por meio de
omissões e desvirtuamentos dos pontos centrais.
Neste
trabalho iremos analisar de que forma a Constituição de 1824 é reflexo desse
caráter do pensamento nacional. Duas premissas essenciais do pensamento liberal
estão no discurso, mas não no conteúdo efetivo dessa Carta, quais sejam: a
separação dos poderes e a liberdade dos cidadãos.
A
primeira constituição do país, outorgada em 1824 pelo então Imperador D. Pedro
I, teve um antecedente fundamental que foi a Assembléia Constituinte ocorrida
em 1823. Essa assembléia foi produto de um conjunto de articulações políticas e
viria a ser um marco no processo de consolidação da independência do país.
Ainda
que tenha sido dissolvida pelo Monarca, funcionou como uma demonstração de
autonomia política da ex-colônia e, ao mesmo tempo, na sua constituição e
desenvolvimento mimetizou as contradições que marcaram e marcam o nosso
desenvolvimento sócio-político. (BONAVIDES, 2004, p. 99).
O
discurso de abertura da Assembléia, feito pelo Imperador, ilustra a contradição
entre os ideais liberais de separação de poderes, fundamental para um estado
constitucional de direito, e o caráter autoritário e monocrático que se observa
na prática:
Como Imperador
Constitucional, e mui especialmente como Defensor Perpétuo deste Império, disse
ao povo no dia 1º De dezembro do ano próximo passado, em que fui coroado e
sagrado, que com minha espada defenderia a Pátria, a Nação e a Constituição, se
fosse digna do Brasil e de mim. Ratifico hoje que mui solenemente perante vós
esta promessa, e espero que me ajudeis a desempenhá-la, fazendo uma
Constituição sábia, justa, adequada e executável, ditada pela razão, e não pelo
capricho, que tenha em vista somente a felicidade geral, que nunca pode ser
grande sem que esta Constituição tenha bases sólidas, bases que a sabedoria dos
séculos tenha mostrado, que são verdadeiras para darem uma justa liberdade aos
povos, e toda a força necessária ao Poder Executivo. (...)
Uma Constituição,
em que os três poderes sejam divididos de forma que não possam arrogar direitos
que lhe não compitam mas que sejam de tal modo organizados e harmonizados, que
se lhes torne impossível, ainda pelo decurso de tempo, fazerem-se inimigos, e
cada vez mais concorram de mãos dadas.
(...) espero
que a Constituição que façais, mereça a minha imperial aceitação. (D. Pedro I,
apud BONAVIDES, 2004, p. 48-49)
Assim, o discurso
inaugural, em si, já anunciava essa incongruência entre as ideias: separação e
autonomia de poderes e a necessidade de “aceitação imperial”.
Além disso, não havia uma
unanimidade entre os ideais e anseios dos participantes dessa constituinte.
Representavam a elite nacional: 19 eclesiásticos, 22 desembargadores, 23
bacharéis e 7 militares. Como se vê, nenhum “do povo”. Ainda que unidos pelo
sentimento de valorização do novo país, de sua independência, divergiam quanto
à possibilidade de instituição de um ministério executivo independente do
monarca, assim como quanto aos valores e referências liberais. Havia
conservadores, radicais e ponderados (Calmon, 1959, p. 1519/1520).
Paulo Bonavides explica
que o conjunto cultural nacional à época da primeira constituinte sofria de uma
precariedade de consciência cívica, influenciado, em alguma medida, pelo
caráter de concessão e não de conquista da independência e ainda uma certa
insegurança quanto a esta nova condição. Além disso, as condições sociais,
produtos dos trezentos anos de exploração colonial, eram sofríveis (2004, p.
46/47). Assim, segundo o autor:
Uma
constituinte derivada desse meio não poderia ser, por conseguinte, um modelo
exemplar de aplicação das doutrinas do constitucionalismo na pureza abstrata do
ideal.
(...)
Materialmente,
as limitações tácitas ser tornavam mais estrondosas: confirmaram-se, de fato,
no decurso da tarefa constituinte e sobretudo na crise de que resultou o
colapso do poder do nosso primeiro órgão formal de soberania, desbaratado por
um golpe de Estado, fruto da aliança da tropa com o Imperador, ambos naquela
altura instrumentos da ideia absolutista.
(...)
Uma
Constituinte à semelhança daquela que Siéyés teorizou para a França do século
revolucionário não existiu nem poderia existir no Brasil de D. João VI e Pedro
I.
Se tivermos
sempre os olhos fitos na realidade brasileira da época, compreenderemos que,
sem embargo de toda a força e vocação das elites para as altitudes abstratas do
ideal de liberdade e para a rejeição do colonialismo, não havia como o Reino se
mover fora da esfera de limitações contidas nos pressupostos fáticos da
sociedade e do poder dinástico estabelecido. (BONAVIDES, 2004, p. 46)
No curso das discussões
no interior da Assembléia Constituinte, ficou evidente o incômodo de grande
parte de seus componentes com as limitações prévias impostas pelo imperador.
Estava claro para os constituintes que a essência da autonomia dos poderes
deveria ser preservada. No entanto, D. Pedro I monitorava suas ações e,
percebendo a ameaça ao absolutismo que desejava manter, em que pese seu
discurso ser no sentido da tripartição dos poderes, no dia 12 de novembro de
1823, seis meses após sua inauguração, cercando com suas tropas o edifício no
qual funcionava, encerrou a primeira Assembléia Constituinte do país.
Feito esse brevíssimo
relato acerca do evento fundamental que a precedeu, discuto agora o objeto de
análise deste artigo, a Constituição Brasileira de 1824 (Carta da Lei de Março
de 1824) que, segundo Pedro I, seria “duplicadamente liberal”.
Considerando a
insatisfação gerada no âmbito da sociedade brasileira pela dissolução da
Assembleia Constituinte, o Imperador, no intuito de resgatar em alguma medida a
imagem de liberal que queria representar, constituiu uma comissão responsável
pela elaboração do novo texto constitucional e, num curto período de tempo após
interromper os trabalhos legislativos, outorgava a nova constituição do país.
Essa Constituição teve
grande influência do texto elaborado na constituinte, não fosse por uma
inovação que viria a ser determinante no desvirtuamento do princípio
constitucional mais relevante à época, que era a limitação dos poderes do
imperador e a submissão deste às leis do país: o Poder Moderador. Que, nos
termos daquela Carta, consistia em:
Do
poder Moderador
Art. 98. O
Poder Moderador é a chave de toda a organização política, e é delegada
privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e eu seu Primeiro
Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independência,
equilíbrio e harmonia dos mais poderes políticos.
Art. 99. A
Pessoa do Imperador é inviolável e sagrada: ele não está sujeito a
responsabilidade alguma.
Art. 100. Os
seus títulos são “Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil” e tem
o tratamento de Majestade Imperial.
Art. 101. O
Imperador exerce o Poder Moderador:
I – Nomeando
senadores, na forma do Art. 43.
II – Convocando
a Assembléia Geral extraordinariamente nos intervalos das sessões, quando assim
o pede o Império.
III – Sancionando
os Decretos e Resoluções da Assembléia Geral, para que tenham força da Lei:
Art. 62.
IV – Aprovando
e suspendendo inteiramente as Resoluções dos Conselhos Provinciais.
V – Prorrogando
ou adiando a Assembléia Geral e dissolvendo a Câmara dos Deputados, nos casos
em que o exigir a salvação do Estado, convocando imediatamente outra que a
substitua.
VI – Nomeando e
demitindo livremente os ministros de Estado.
VII –
Suspendendo os magistrados nos casos do Art. 154.
VIII –
Perdoando e moderando as penas impostas aos réus condenados por sentença.
IX – Concedendo
anistia em caso urgente e que assim aconselhem a humanidade a bem do
Estado.
Vê-se do conteúdo acima
que o Monarca arrogava a si o controle sobre todos os demais poderes, além de
não poder ser responsabilizado. O controle do judiciário consistia no arbítrio
da nomeação e exoneração dos magistrados. O legislativo era controlado por meio
do poder de nomear os senadores, do poder de dissolver, a qualquer momento, a
Câmara dos Deputados, assim como do poder de vetar as leis originárias do
legislativo.
Sobre este poder,
Bonavides explica que:
Com efeito,
havia fundadas razões para o temor e a desconfiança de federalistas liberais e
republicanos, com respeito àquela inovação que a praxe constitucional de outros
países desconhecia. Pelo menos a da Europa, cujas instituições nos haviam
servido de modelo. Demais, fora ela colhida nos livros, extraída das reflexões
de um publicista-filósofo e prosador. Fizera com o Império sua estréia, fadada,
porém a produzir resultados imprevisíveis.
Quem lê a
Constituição do Império há de averiguar que havia justificados fundamentos para
convalidar o receio dos que opugnavam a introdução do novo poder. Seu ingresso
no texto da Constituição, qual ocorrera, importava já uma ofensa ao princípio
concebido para fazer a liberdade e a harmonia dos poderes. O Poder Moderador
fora aqui introduzido de forma diferente, tamanha a soma, a profundidade e a
extensão das competências assinaladas ao seu titular, que não era de um só
poder, senão de dois, visto que em sua pessoa vinha acumular-se também a
titularidade executiva. (BONAVIDES, 2004, p. 106)
Se
a inspiração desta constituição foi, ao menos em tese, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, esse
dispositivo afronta o conteúdo do seu art. 16 que dispõe “Qualquer sociedade em que não esteja
assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação dos poderes
não tem Constituição.”, ou seja, nesta ótica, não tínhamos uma constituição.
Isto porque, ainda que o nosso texto constitucional de 1824 tivesse
dispositivos que faziam referências a quais eram as competências e atribuições
de cada um dos poderes, a instituição de um “super-poder”, o moderador, que se
sobrepõe a todos os demais de forma a controlá-los e retirar deles qualquer
autonomia, fez com que tivéssemos, na prática, um absolutismo travestido de
legitimidade constitucional.
Dessa forma, o mesmo D. Pedro I que
disse “Amo a liberdade e, se me visse obrigado a governar sem uma
Constituição, imediatamente deixaria de ser imperador, porque quero governar
sobre corações com brio e honra, corações livres”, impunha a esse mesmo
“povo livre” o uso das forças militares no combate à liberdade de expressão
daqueles que se opunham a ele, assegurava a manutenção do regime escravocrata
e, como já dito, centralizava os poderes e governava de forma monocrática
(VILLA, 2011, p. 20-21). Refletindo acerca dessas contradições, o historiador
Marco Antônio Villa, no livro A História das Constituições Brasileiras, ilustra
esse cenário quando narra o seguinte:
No fim da Constituição, o imperador incluiu algumas
garantias políticas e civis no artigo 179. Mesmo perseguindo, ameaçando e
prendendo jornalistas que criticavam seus atos, a Carta fala que “todos podem
comunicar os seus pensamentos por palavras, escritos, e publicá-los pela
imprensa, sem dependência de censura”. Não é o que a prática imperial
demonstrou. Em junho de 1823, o jornalista Luís Augusto May, redator de A
Malagueta, acreditando no “liberalismo” do imperador, fez duros ataques ao
seu governo. Em vez do respeito à liberdade de imprensa, foi alvo de um bárbaro
espancamento na própria casa por um grupo de quatro mascarados (algumas fontes
informam que o próprio Pedro I teria participado do ato). Ironicamente, o mesmo
artigo constitucional dispõe que “todo cidadão tem em sua casa um asilo
inviolável.” (VILLA, 2011, p. 20)
Toda essa inversão é
contrária ao ideário propugnado pelo Constitucionalismo, especialmente no que
refere às garantias que deveria assegurar aos cidadãos, no sentido de não ficar
mais ao arbítrio do soberano. Essa é a premissa básica do Estado moderno, no
que se opõe ao Estado absoluto e, no nosso caso, é violada no próprio texto
constitucional.
A leitura do texto de
nossa primeira constituição permite observar que a contradição entre “ideias
ilustradas e realidade obscura” não se dá apenas no nível abstrato, no sentido
de que o texto tem um conteúdo e a sua aplicação não ocorre ou se acontece é de
outra forma. Além de não haver esse casamento entre o ideal disposto no texto
normativo e os fatos, o que, diga-se, também ocorreu nos países dos quais se
tenta copiar o modelo, o nosso próprio texto, no seu interior, é contraditório.
A Constituição informa que “Art. 3º O seu Governo é Monárquico, Hereditário,
Constitucional e Representativo.”, no entanto, no próprio desenvolvimento do
novo estatuto, os únicos que são efetivamente assegurados são o caráter
monárquico e o hereditário, ou seja, os valores existentes no modelo
absolutista.
Isto porque, como dito
anteriormente, não é propriamente constitucional, haja vista não atender aos
quesitos básicos do que se entendia como Estado constitucional; nem é
representativa, considerando os critérios censitários para que se pudesse
participar do processo eleitoral, além de a Câmara dos Deputados, a casa dos
representantes, poder ser dissolvida a qualquer tempo pelo monarca.
Fazendo um resumo de como
as ideias liberais e de monarquia constitucional regrediram ao absolutismo
materializado na constituição de 1824, Pedro Calmon explica que:
Choque de
ideias
Submersa a
agitação democrática na opressão do governo pessoal, ressurgiram, como por
encanto, as doutrinas do absolutismo, da legitimidade dos soberanos, da
submissão do povo à vontade ilimitada.
Dir-se-ia que a
influência estrangeira obedecia a um movimento de translação.
Em 1821,
respirava-se o liberalismo francês, de 89; em 1822, o constitucionalismo
inglês, modelado pelo parlamento e pela coroa, que o respeitava; em 1823, a
Santa Aliança, com a reivindicação dos reis, segundo os princípios da
“vilafrancada” em Portugal, das cortes de Luis XVIII, do Czar Alexandre, de
Metternich... Evidentemente D. Pedro I não tinha a docilidade de gênio, sequer
a madura opinião dum sectário: o seu absolutismo foi impulsivo e momentâneo.
Democracia para ele (e José Bonifácio) era anarquia... . Abateu o Congresso,
que quisera destruí-lo; e, passado o incidente, voltava apressadamente a
conciliar-se com os moderados de sua roda, alguns dos quais pusera no Conselho
de Estado, para que o ajudassem a fazer a “sua” Constituição. (CALMON, 1959, p.
1526/1527).
Ou seja, as ideias eram
adaptadas conforme o interesse dominante. Dentro do rol de influências externas
possíveis o país adotava a que fosse mais compatível com o que se queria estatuir
ou manter. Foi, portanto, dessa forma que chegamos à nossa primeira
Constituição, contrariando ao que seriam os princípios essenciais da noção de
constituição: um texto que não limitava poderes, nem assegurava a liberdade. Em
estudo acerca da influência de Benjamin Constant no sistema político do império
brasileiro, Silvana Mota Barbosa explica que:
Esta “tradição
imperial” dizia respeito exatamente àquilo que era a base de toda organização
política, aquilo que selava o pacto de criação de uma nação: a Constituição.
Para o jurista Afonso Arinos de Melo Franco o Poder Moderador teria sido a
maneira encontrada pelo Imperador para satisfazer sua sede de autoridade (...).
Segundo o autor, o Poder Moderador teria sido, em sua origem, a materialização
da necessidade de um poder forte concedido ao monarca, mas também legitimado
pelas tendências constitucionais da época, quando Benjamin Constant era figura
ainda respeitada e, talvez, a última palavra em termos constitucionais.
Raymundo Faoro
também trabalhou essa questão mostrando como duas vertentes opostas, comuns à
época eram impraticáveis no Brasil, sendo que a opção encontrada foi seguir a
corrente doutrinária que surgia em Montesquieu, passava por Sieyes e foi
definida em Constant: tratava-se de um “liberalismo sem soberania popular”, no
qual o pacto não foi estabelecido nos termos em que pensava Rousseau, “que
faziam o rei e a autoridade obra do país e não de condições pré-existentes”.
Pelo contrário, a aclamação do Imperador foi anterior ao pacto e à própria
nação.
Essas “ideias fora do
lugar” passam, assim, por processos de conformação e juntam-se opostos
inconciliáveis: tripartição e harmonia de poderes em oposição ao super-poder
moderador; liberdade individual confrontada com a escravidão. Sobre esta última
contradição passamos a discutir no próximo tópico.
Liberdade e escravidão
Dando prosseguimento à
análise das contradições da Constituição de 1824, outra questão que surge é sua
ineficiência em assegurar direitos humanos básicos àqueles que constituíam a
grande maioria da população nacional, quais sejam, os escravos.
Segundo Skidmore (1998,
p. 61/62), após a independência o país tinha no tráfico de escravos sua mais
importante fonte de mão-de-obra e estava distante de ter uma burguesia próxima ao
modelo europeu, especialmente porque aqui a economia era baseada nas produções
da agricultura e na exploração mineral, sendo que os produtos dessas atividades
eram, em seguida, comercializados por portugueses. Aqui também não havia
atividade manufatureira. Nesse contexto, a principal relação de trabalho no
interior do país era entre senhor e escravo.
O que se observou no país
recém-independente foi um retrocesso quanto ao processo abolicionista. Um dos
artigos do texto elaborado pela constituinte de 1823, que foi suprimido na
Constituição de 1824, tratava exatamente da possibilidade de extinção da
escravidão em território nacional:
Art. 253. A
Assembléia terá particular cuidado em conservar e aumentar as Casas de Misericórdia,
Hospitais, Rodas dos Expostos, e outros estabelecimentos de Caridade já
existentes, e em fundar novos.
Art. 254. Terá
igualmente cuidado de criar Estabelecimentos para a catequese, e civilização
dos Índios, emancipação lenta dos
negros, e sua educação religiosa, e industrial. (grifo nosso)
O texto que vigeu no país até 1891
não continha as palavras “negro” ou “escravo” e relacionadas, ou seja, havia
uma omissão, um silêncio absoluto sobre aqueles que compunham a massa de
trabalhadores do país. Em uma análise acerca de como essas ideias
contraditórias se davam entre os formadores de opinião no país, Beatriz Galloti
Mamigonian descreve uma intervenção do Deputado Raimundo José da Cunha Mattos,
segundo ela:
No entanto, as
discussões revelaram os contraditórios sentimentos em relação à abolição do
tráfico de escravos. Ninguém ousou defender abertamente sua perpetuação, mas
sintomática foi a longa intervenção do deputado por Goiás Raimundo José da
Cunha Mattos, militar português que havia vivido 18 anos na costa africana
antes de se transferir para o Brasil. Mattos reprovou a assinatura do tratado,
por considerá-la inconstitucional e precipitada, e condenou a proibição do
tráfico por ser prematura e prejudicial à economia do país. Não admitiu
defender abertamente a continuação indefinida do comércio de escravos africanos
diante dos espíritos esclarecidos pelas “luzes do século”, mas declarou ser
esse “um mal menor”e assim arrolou todos os argumentos de defesa do tráfico e
da escravidão: o comércio de prisioneiro de guerra era natural aos povos
africanos e sobreviveria à proibição do comércio transatlântico; era melhor
para os africanos serem escravos no Brasil do que prisioneiros de guerra e
sujeitos à morte na África; e os escravos africanos eram extremamente
necessários para o desenvolvimento da economia do Brasil, especialmente na
impossibilidade de civilizar os índios ou de obter trabalhadores livres
europeus. Cunha Mattos reservou boa parte do discurso para criticar a suposta
filantropia britânica em relação aos africanos. (p. 220/221)
Mamigonian conclui que durante o século XIX a política
externa brasileira foi pautada pela resistência às exigências britânicas para
que fosse abolido o tráfico negreiro. Ela afirma que, em que pese tentasse dar
alguma satisfação aos ingleses sob o argumento de que isso se daria de forma
gradual, o que o Estado brasileiro fez foi instrumentalizar e apoiar essa atividade,
especialmente porque politicamente servia como um fator de manutenção da
integração nacional, haja vista esta prática servir de elo de ligação entre as
elites regionais e o comando central (Mamigonian, 2009, p.229/230).
CALMON, Pedro.
História do Brasil: século XIX – conclusão – O império e a ordem liberal. Vol.
V. Editora. Livraria José Olympio. Rio de Janeiro, 1959.
MAMIGONIAN, Beatriz Galloti. A
proibição do tráfico atlântico e a manutenção da escravidão. In: O Brasil
Imperial, volume I: 1808-1831. Org. Keila Gringerg e Ricardo Salles. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
SCHWARZ,
Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos
inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000.
Sk
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